A criação humana
A criação e a expressão artísticas estão presentes desde os primórdios da humanidade, das pinturas rupestres das grutas de Altamira e Lascaux às exposições de arte contemporânea que podemos ver em Serralves ou na Gulbenkian; de uma dança tribal Sioux à Sagração da Primavera de Stravinsky; das máscaras africanas aos rostos de Modigliani. A arte ou as artes em geral deviam ocupar um belo e espaçoso lugar na vida de todos nós. Precisamos desse conforto do espírito, desse alimento da alma, tão essencial quanto o pão que comemos. Sim, sabemos que sem comida não sobrevivemos. Mas será que estamos na vida apenas para comer e nos reproduzirmos como os animais? Então também não seria importante saber ler e escrever…
Ler um livro, escrever um poema, ver um filme ou uma exposição, assistir a um espetáculo de teatro ou de dança, não nos tornam perfeitos ou melhores, mas são atividades que alargam a dimensão da condição humana e a compreensão do que somos.
A realidade
Contudo, esta realidade/não realidade cultural dificilmente corresponde à vida quotidiana e à ocupação do tempo da grande maioria das pessoas. A fruição de atividades designadas como artísticas e culturais são, infelizmente, hábitos de uma minoria. Basta atentarmos nos últimos dados estatísticos referentes aos hábitos culturais dos europeus, que são especialmente devastadores no que se refere ao nosso país. Situamo-nos em último lugar no que diz respeito à leitura, idas ao teatro e dança; estamos em penúltimo na frequência de cinemas, monumentos e museus e antepenúltimo nas bibliotecas. Apenas uma escassa minoria frequenta museus, tem hábitos de leitura, vão ao cinema ou ao teatro.
Apenas a história das técnicas e a tecnologia parecem registar evoluções imparáveis. O acesso generalizado e economicamente mais acessível a toda uma nova gama de equipamentos e meios que vão constituindo este nosso admirável mundo novo digital são bem-vindos, mas não devem ser exclusivo único da ocupação das nossas horas de ócio. É certo que há grandes músicos, filmes maravilhosos, bons livros para ler e teatro para ver. E tudo se liga: criações científicas, técnicas e culturais. Mas feitas as contas, e falando do que é enganadoramente dominante, parece que a materialidade e a aquisição voraz de bens materiais domina os objetivos de vida e forma a mentalidade no mundo rico e desenvolvido. O problema não é novo. Vem de trás.
Desenvolvimento e cultura
Todo e qualquer modelo de desenvolvimento e de política económica e social estão dependentes, assumidamente ou não, de uma perspectiva cultural ou de uma visão do mundo. Partindo deste princípio, essa visão ou entendimento deverá ser o mais abrangente possível e sedimentar a ideia de que a história da cultura e das artes, assim como a formulação no presente de novas políticas culturais, não deve ser entendida de modo separado da vida económica de uma sociedade.
Aliás, a palavra cultura, só por si, soa para a grande maioria das pessoas como mundo à parte e privilégio de uns poucos. Quase não a devíamos pronunciar se queremos fazer passar a mensagem a muitos mais.
Fundamental é ter uma visão estratégica que tenha em conta uma rigorosa noção de planeamento ao serviço dos cidadãos e contra os interesses de grupo. Não fazer para turista ver, pois ao desenvolver para quem cá está proporcionamos também o melhor a quem nos visita. Importa requalificar ruas e praças, reabilitar e renovar casas, cuidar de quem habita.
Para que estas palavras não sejam meramente teóricas e possam entroncar na realidade da região do Algarve, tanto na sua história, no que somos, mas também na procura de um modelo que melhor configure o rosto da nossa modernidade no futuro, avanço alguns exemplos.
Assim, em sintonia com uma oferta cultural abundante, importa que as pessoas vivam em cidades e vilas dotadas de uma boa rede de transportes, beneficiem de horários de funcionamento de espaços públicos que tenham em conta a organização diária do ritmo de vida das pessoas. Por exemplo, de que serve ter uma boa exposição de artes visuais num museu ou galeria municipal que fecha às 5 da tarde e está fechado ao fim de semana?
E se a escola não estiver implicada em parcerias com museus e auditórios será que muitos alunos poderão usufruir ou ser educados com o que aí se passa? Para que servirá ter Serralves em Faro se falta uma pesquisa e análise aprofundada do que é o meio artístico local e da seleção e mostra que se poderia constituir a partir da região?
Será que há assim tanto público para que se programem espetáculos com a mesma natureza artística em cidades tão próximas… Felizmente muita coisa mudou, todos sabemos que a região está melhor e todos beneficiamos com isso. Na cultura a Rede AZul e o Algarve 365 são bons exemplos, assim como no urbanismo os recentemente anunciados programas de reabilitação urbana. Mas muito está por fazer.
Como posso ter mais movimento e vida na baixa da cidade se o coração do seu centro cívico, as suas artérias principais pararam de bater, com tanta casa devoluta e lojas e cafés a fechar às 7 e às 8?…
Faro esboça algumas tentativas de animação da baixa comercial, graças a um esforço nesse sentido, resultante da parceria entre a associação de comerciantes e o município (a baixa street fest foi uma boa iniciativa), mas não é fácil, pois o Forum é quase a grande praça pública da antiga Roma em versão comercial, sem templos e edifícios públicos.
Que dizer de Portimão, que exceptuando o Verão, vê a sua magnífica e ampla zona ribeirinha quase deserta de gentes; porque as famílias e a grande maioria dos portimonenses procuram refúgio nas horas de ócio nos centos comerciais que os autarcas deixaram proliferar pela cidade… O que é hoje o TEMPO, o teatro municipal da cidade, quando o dinheiro se esgotou… Uma sombra de programação comparada com o fulgor inicial; a caixa forte do Fernando Mendes em Agosto.
E Silves, minha bela e leda cidade adormecida, como insuflar-te vida e animação… Todo o imenso legado patrimonial e arqueológico da cidade precisam de uma ambição de futuro e de uma estratégia de afirmação. Para quando a abertura do núcleo museológico da Arrochela? Que solução para o cineteatro? A feira medieval realizada no pico do Verão é, sem dúvida, uma grande iniciativa e uma imensa fonte de receita; sei que vai crescer e é bom para o negócio, para o comércio. Mas a cidade não pode ficar culturalmente refém do grande evento, precisa de novos projectos e mais ousadia política.
Temos muitos vícios de novo-riquismo, passámos muito rapidamente do estado pré-moderno e saloio para uma ficção megalómana de ter não sei quantos pavilhões multiusos, não sei quantos auditórios (muitos sem funcionários e programação), marinas e mais marinas (será razoável construir mais uma marina na foz do Arade, em Ferragudo…)
Enfim, o desenvolvimento da região será tão devedor da nossa iniciativa e intervenção como cidadãos, quer individualmente quer em associação, tanto quanto da realização política e institucional do Governo e das autarquias. Desejável é a aliança das múltiplas iniciativas, num espírito de colaboração, deitando por terra a estreita visão local e os chicos-espertos, em nome de uma perspectiva de desenvolvimento regional, moderna e verdadeiramente cosmopolita.
Opinião de Paulo Penisga | Professor de História e Ativista do presente