Segunda-feira, dia 11 de fevereiro de 2019, a capital da região do Algarve faz história ao ser a segunda cidade portuguesa a implementar os sistemas partilhados de trotinetes.
Numa apresentação pública, o executivo municipal lançou a mobilidade suave partilhada com a introdução na cidade de 75 destes veículos, da responsabilidade da empresa sueca «VOI».
Uma semana após o lançamento são introduzidas mais 100 unidades, a cargo da empresa alemã «Flash». As bicicletas partilhadas espera-se que cheguem até ao fim do ano após realização de concurso público para exploração das mesmas.
No atual panorama de desenvolvimento sustentável o desígnio da mobilidade partilhada é preponderante, pelo que esta medida à primeira vista coloca Faro numa lista de cidades da vanguarda. No entanto, há que contextualizar melhor a medida.
Segundo Rui Carvalho, diretor de operações da empresa «Flash» em território nacional, o nosso país é visto como um paraíso para o investimento e implementação destes sistemas entre outros motivos por ter «cidades onde já houve investimento anterior para receber meios suaves de transporte», de acordo com entrevista dada ao jornal «barlavento».
Estas condições ideais estiveram igualmente subjacentes à criação do negócio da «VOI», de origem Sueca, onde segundo Fredrik Hjelm, presidente e fundador da empresa, em declarações ao jornal Observador diz que «as cidades suecas são boas no que diz respeito a infraestruturas e transportes e havia esta procura muito óbvia por novas soluções de mobilidade, inovadoras, nas cidades».
Atualmente, estas infraestruturas são uma realidade na capital do nosso país, Lisboa, a primeira cidade portuguesa a permitir a implementação destes sistemas. São-no porque esta iniciou há mais de seis anos uma revolução no seu espaço público, reformulando e criando novas vias de circulação para privilegiar os meios de deslocação suaves.
No entanto, essa não é a realidade de Faro. E contrariamente ao que Rui Carvalho afirma, esta transformação da fisionomia do espaço urbano de Lisboa deveu-se em parte à massa crítica de utilizadores diários de velocípedes que existia já na cidade e que iniciou a pressão para a mudança do paradigma.
Com a criação e evolução das adequadas condições de circulação para este meio de transporte verificou-se um crescimento exponencial desta massa crítica, que por sua vez validou e impulsionou a continuação destas mudanças ao longo destes mais de seis anos.
No município farense, desde dia 26 de novembro de 2018 vigora um Plano de Mobilidade e Transportes (PMT), aprovado em Assembleia Municipal. Este documento estratégico contou com contributos de vários sectores da sociedade local e entidades nacionais, e foi desenvolvido ao longo de mais de quatro anos por uma empresa externa especializada em planeamento e gestão da mobilidade, Mobilidade e Planeamento do Território, cuja responsável, Paula Teles, é igualmente a presidente do Instituto de Cidades e Vilas com Mobilidade (ICVM).
Financiado com verbas públicas, este plano contemplava já a medida para implementação de sistemas partilhados de transportes: «proposta 15 – Implementar um sistema de partilha de bicicletas em pontos chave da cidade», calendário de execução a médio e longo prazo (Volume II – Fase III – PMT).
Nesta mesma proposta pode ler-se também que «o sistema de partilha de bicicletas deve ser implementado logo após a execução da primeira fase da rede de ciclovias da cidade». Desta forma, e de acordo com o plano em vigor, este sistema de partilha deve surgir somente depois de estarem reunidas as condições mínimas de segurança para o uso destes meios e para a coexistência saudável dos vários meios de transporte.
Esses seriam os passos correspondentes à proposta 12, cujo calendário de execução é a curto, médio e longo prazo, e que segundo o mesmo plano deve ser acompanhada da implementação simultânea da «proposta 16 – Implementar os sinais de trânsito previstos no Código de Estrada».
Ora, as propostas anteriores à proposta 15 não foram até ao momento concretizadas, e o investimento prévio de que fala o responsável da «Flash», no caso de Faro, é inexistente. O executivo camarário optou desta forma por dar início à execução do seu plano pela ordem inversa: a desordem!
É preciso salientar que não é a medida em si que está em causa, mas sim a maneira como está a ser implementada. Saltar um conjunto de etapas de um planeamento poderá fazer a diferença entre o sucesso ou o fracasso das medidas executadas.
O presidente do executivo municipal de Faro afirmou, no lançamento público desta medida, que não podemos estar sempre à espera das condições ideais, caso contrário, nunca se faz nada e com a implementação na cidade destes sistemas vão surgir novos problemas não previstos até ao momento. Embora estas afirmações sejam válidas, os planos servem exatamente para minimizar cenários adversos, prevendo-os e tentando solucioná-los a priori. Em resumo, o planeamento serve para tentar criar as situações mais próximas das ideais e maximizar assim o potencial de cada medida que se implementa.
«O exercício de planear é, talvez, o mais sustentável que existe, independentemente da matéria em si. É o que consegue fazer a caracterização do problema, o diagnóstico, e, perante estes, encontrar as tendências, as estratégias, que têm a ver com a visão e a missão, a criação de cenários de propostas para antecipar o futuro», para citar Paula Teles, Smart Cities, arquiteta responsável pelo PMT de Faro.
Em boa verdade, estes sistemas não trazem problemas novos ao município.
A crescente utilização da bicicleta registada nos últimos três anos, como meio de transporte diário de vários munícipes, veio colocar muitas das questões que agora se acentuam com esta implementação avulsa do sistema partilhado de velocípedes elétricos na cidade.
Vejamos, as trotinetes são velocípedes equiparados às bicicletas, de acordo com a lei portuguesa em vigor, motivo pelo qual só podem circular nas vias rodoviárias ou ciclovias, sendo estritamente proibido circular no passeio (exceção se for menor de 10 anos e/ou em caso de autorização de regulamento local com respetiva sinalização – artigo 17º, Código Estrada).
Tendo em consideração o disposto anterior e igualmente:
– o estado físico atual das vias da cidade de Faro, com o centro da cidade composto por paralelepípedos desnivelados por falta de manutenção; restante área com asfalto em péssimo estado de conservação (buracos, tampas de saneamento urbano desnivelados, entre outros); a quase inexistência de ciclovias em perímetro urbano, e a deteriorização das poucas existentes;
– que não foram implementadas medidas de acalmia de tráfego, por exemplo com introdução de perímetros urbanos destinados à circulação automóvel de baixa velocidade (zonas 30 km/h), e simultânea introdução de sinalética, medidas que constam igualmente no PMT como de execução a curto, médio e longo prazo;
Conclui-se assim, que as condições (quase) perfeitas estão longe de existir no município de Faro. Mas foram, sim, identificadas, estudadas e planeadas segundo uma ordem de execução que por opção do executivo municipal, não foram asseguradas.
Outro dos fatores que tornam as cidades portuguesas tão atrativas à implementação deste modelo de negócio por parte destas start-ups é, na óptica de Fredrik Hjelm, o facto de termos «uma situação política liberal». Esta, permite que as empresas interessadas se estabeleçam com serviços que não são uma real alternativa de mobilidade partilhada para utilização diária das populações residentes, mas sim, um modelo de negócio pensado para utilizações esporádicas, em grande parte por turistas.
Este facto é facilmente comprovado pelo elevado custo de utilização associado a estes velocípedes partilhados que não incentiva a uma utilização frequente e continuada pelos munícipes mas, apenas utilizações ocasionais, não promovendo mudanças de hábitos de deslocação de forma a implementar um novo paradigma de mobilidade, que obrigue a uma diminuição efetiva na utilização diária do automóvel.
E uma vez mais não vai ao encontro das diretrizes do PMT, que sugere explicitamente que, «é fundamental que haja a disponibilização das mesmas aos residentes da cidade a preços simbólicos (recomenda-se um pagamento anual)», na proposta 15 – Volume II – Fase III.
O fator custo para o utilizador aliado ao modelo de funcionamento destes sistemas torna-o muito pouco inclusivo. Para cada utilização é estritamente necessário o uso de um smartphone que permita apps várias (tendo em consideração que cada uma das empresas a operar tem a sua) e pagamentos online, o que per si não os torna «amigos» do utilizador – gerações que não utilizem telemóveis de última geração e/ou pagamentos online.
No espaço de uma semana, com esta novidade, as questões da utilização do espaço público, que na cidade de Faro são frequentemente motivo de discussão, estão mais que nunca na ordem do dia, pelas piores razões.
O espaço destinado ao peão, que frequentemente é usurpado pelos veículos automóveis sem que o município e as autoridades competentes acabem com este flagelo, vê essa situação agravar-se com 175 trotinetes largadas e/ou estacionadas também elas nas vias pedonais, vulgo passeios.
Igual situação se verifica com as bicicletas dos, já muitos, utilizadores diários que pela inexistência de parqueamentos, sinalizados e em condições, se veem igualmente forçados a deixar os seus veículos desordenadamente, muitas das vezes em áreas destinadas à mobilidade dos peões.
Situação que acontece porque os únicos equipamentos existentes na cidade foram colocados em 2009, e 10 anos decorridos, pedida por munícipes a colocação de mais e melhores e contemplada a sua implementação no PMT – não houve qualquer colocação até ao momento de mais estruturas de parqueamento (proposta 13, Volume II – Fase III – PMT).
Esta introdução avulsa das trotinetes não vai assim «roubar» o lugar do carro, ou desincentivar a sua utilização, tendo sido este um dos objetivos referidos na apresentação como estando na génese desta implementação, e igualmente defendido por Rui Carvalho quando afirma que estas vão revolucionar a mobilidade na cidade. Esse objetivo é conseguido dando lugar a ciclovias que retiram algum espaço destinado ao uso do carro e dão segurança aos utilizadores de meios suaves de deslocação, conforme explicado e programado no PMT.
Com um plano aprovado e em vigor, bem fundamentado e estruturado, com calendarização de ações de execução concretas, de forma a permitir o sucesso no cumprimento e objetivos a atingir, não deveria o município de Faro ter dado primazia à execução ordenada, simultânea e/ou sequencial das propostas constantes no mesmo?
Não deveria este acautelar primeiro as condições básicas que muitos dos seus munícipes utilizadores diários de velocípedes há muito aguardam?
Estas condições que são as mesmas que, de acordo com os representantes das empresas privadas de trotinetes, deveriam ser igualmente a base para o sucesso da implementação destas soluções de mobilidade partilhada.
Desta forma, demonstraria respeito e preocupação simultânea por peões e automobilistas, permitindo e promovendo a convivência ordeira de todos os modos de deslocação em detrimento do caos.
Fica a questão: tem Faro as condições para ser a segunda cidade portuguesa com sistema de trotinetes partilhadas? «A goal without a plan is just a wish» ― Antoine de Saint-Exupéry.
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Nota da direção: O citado Plano de Mobilidade e Transportes (PMT) não está disponível para consulta no sítio para o efeito (http://pmtfaro.mobilidadept.com/).