O deplorável acontecimento da «reabilitação» da Igreja Matriz de Olhão, ocorrido na semana passada, traduz a regra no contexto da intervenção em edifícios antigos, em todo o território nacional.
Tem-se assistido, por isso, nos últimos anos, à descaracterização generalizada de todas as igrejas e de todos os edifícios históricos, um pouco por todo o país, onde os materiais construtivos são constituídos pela taipa, pelo adobe ou pela mistura destes com a pedra. Até há cerca de meio século, todos os edifícios eram construídos com os materiais disponíveis na região, utilizando-se os procedimentos técnicos e formais necessários a uma concretização que otimizasse uma integração das construções nos condicionalismos climáticos, paisagísticos e culturais.
Em função da natural variedade dos sítios e da especificidade das circunstâncias humanas toda a arquitetura tradicional patenteava uma assombrosa variedade ao longo do território, criando, deste modo, riqueza cultural, estética e humana.
Coincidindo com o início do fenómeno da grande aceleração das sociedades humanas (para alguns o começo do Antropoceno) e com a utilização de novos materiais (cimento, betão armado, tintas à base de petróleo, alumínios, entre outros), a arquitetura deixou de respeitar os condicionalismos ecológicos e culturais, transformando-se em mera construção civil, constituindo-se, por um lado, como o maior negócio especulativo à face do planeta e, por outro, como o fator mais destrutivo do território mundial.
Em face deste acontecimento dramático, cujas consequências para a nossa casa comum passam pelo aumento exponencial das áreas impermeabilizadas, pelo acentuar da separação entre o homem e a natureza, pela artificialização do modo de vida das pessoas, pela uniformização da paisagem urbana e por uma poluição visual hiperbólica e galopante que deixa poucos lugares incólumes, verifica-se uma nítida clivagem entre a atitude de países culturalmente evoluídos e todos os outros, onde infelizmente se inclui Portugal, no que toca à salvaguarda dos valores culturais, e no que diz respeito ao património arquitetónico.
A utilização dos materiais construtivos tradicionais e compatíveis nos centros históricos de Itália, Suíça, Áustria, Holanda, Suécia, é a regra. Não há margem para outras soluções. Em Portugal, pelo contrário, a regra é a utilização dos materiais utilizados na construção de prédios modernos, como o cimento, a tinta plástica e os alumínios, e que são totalmente incompatíveis com os materiais tradicionais.
A consequência é a descaracterização completa dos edifícios, a perda da sua autenticidade e identidade histórica, e a sua transformação em ridículos pastiches, quando não em autênticos abortos. Por outro lado geram-se as condições para a degradação estrutural e física dos edifícios a médio e a longo prazo.
A cal sempre foi, ao longo dos séculos, o santo graal dos processos construtivos em grande parte do planeta, tendo, na bacia mediterrânica atingido o seu apogeu expressivo e cultural.
Se tivéssemos que escolher um, de entre os vários ícones que melhor representavam a identidade algarvia e a interação do homem com a terra, seria a cal, sem dúvida a eleita. A casa algarvia, nas suas várias versões, é, sobretudo, uma criação da cal, que é pedra processada e que portanto é um material nobre. A partir de um complexo e sofisticado processo artesanal obtém-se uma substância de uma versatilidade espantosa, com a qual se pode pintar, modelar, esculpir e construir.
Autênticas obras-primas escultóricas erguiam-se em todo o território algarvio prodigalizando mais beleza à paisagem. Em poucos anos quase tudo se extinguiu. O nosso povo e todas as entidades públicas, contudo, resolveram banir este material e seus derivados do universo da construção.
Tornou-se marginal, sinónimo de pobreza, atraso e desprestígio social (no centro histórico de Estocolmo os edifícios são obrigatoriamente pintados com cal e pigmentos naturais). Resultado: numa região cuja identidade estava marcada pela cal, não se consegue, hoje em dia, quase arranjar um único caiador que possa acudir, por exemplo, à manutenção de uma parede de uma igreja num sítio como Olhão, referenciado como detentor de uma autenticidade vincada.
Parede de igreja que, antes de ter sido reduzida a uma inerte e asséptica lisura farmacêutica, ostentava na sua organicidade, patine e reverberações luminescentes da cal, o espírito do lugar e o testemunho da História! Em 2009 ocorreu um episódio semelhante na Sé de Faro em que a obra também foi embargada.
Na altura, escrevi o seguinte: «já lá foi o tempo em que o clero era instruído e culto. Pelos vistos, nos tempos atuais, isso já não é verdade. Por esse Portugal fora, quantas igrejas já não foram abastardadas sob a batuta de clérigos ignaros?». Hoje, estou em condições de dizer que se aproxima dos 100 por cento a percentagem das igrejas portuguesas de taipa, adobe ou mistas, que sofreram reabilitações à base de cimento e tintas plásticas, isto é, que foram deploravelmente desfiguradas…, «sob a batuta de clérigos ignaros», evidentemente!