O médico cardiologista José Coucello, chefe de serviço, o grau mais alto que se atinge na carreira hospitalar, foi durante cerca de 20 anos diretor do serviço de Cardiologia em Portimão.
Em entrevista ao «barlavento» faz uma retrospectiva do trabalho que tem vindo a desenvolver no Algarve em prol do coração desde 1988, e dá a conhecer a Clínica Gago Leiria, que fundou em 2008, em conjunto com o especialista José Azevedo.
barlavento: Na sua opinião, a saúde para o habitante do Algarve está melhor ou pior, em termos de resolução dos problemas, em comparação ao que era há 10 anos?
José Coucello: Infelizmente está pior. Os hospitais estão com menos capacidade de resolver vários assuntos, de uma forma geral. Perderam-se médicos e especialistas e os que ficaram, em geral, estão menos motivados. Não estou a dizer que as pessoas não são competentes, porque são muito capazes. Mas é uma questão de conjunto. Houve uma degradação de várias vertentes, de equipamentos, estruturas e motivações, que é o mais importante. Não se faz saúde só com instalações. Faz-se com pessoas. São a mola real da qualidade dos cuidados de saúde. A nível estatal e na área da cardiologia nestes últimos anos aconteceram coisas melhores e outras piores. Por exemplo, em Portimão, deixou de haver resposta da cardiologia que existiu na primeira década, onde se resolviam muitos problemas cardiovasculares. Por outro lado, em Faro apareceu um serviço de excelência na área da intervenção cardiovascular (cateterismos, angioplastias). Para fazer uma boa cardiologia não precisamos de ter grandes instalações. Precisamos de ter gente competente, muito motivada, bem organizada e bem dirigida, com objetivos claros para cumprir. Já no que toca à saúde privada, hoje no Algarve há nichos de qualidade, que não havia há 10 anos. Parece um paradoxo. Tanto no público como no privado, a explicação para a diferença entre o êxito e o insucesso está na adequação de competências para quem tem a responsabilidade de dirigir e gerir. Basta fazer uma retrospetiva para cada uma das situações para encontrar a resposta. Com 40 anos de prática de medicina, tenho uma experiência e uma visão que me permitem ver o problema de forma global e analisá-lo na especificidade. Infelizmente em Portugal teremos de esperar pelas novas gerações para que aconteça uma mudança significativa e relevante, com condições para se manter para o futuro.
Como se posiciona a clínica Gago Leiria?
Em julho de 2008 adquirimos a clínica ao colega e amigo Dr. Gago Leiria. Mantivemos o nome por uma questão de respeito e também de marca, mas sobretudo por uma questão de amizade. Desde o início tentámos dinamizar a resposta da clínica às necessidades da população. Por exemplo, para resolvermos uma importante lista de espera para provas de esforço e Holters de 24 horas, foi necessário aumentar o horário de trabalho para os sábados das 8 às 20 horas, adquirir mais equipamentos e contratar mais pessoal técnico e administrativo. Em poucos meses, o problema foi resolvido. Tratamos todas as pessoas de igual forma, sejam consultas privadas, tenham seguro ou venham pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS). Por exemplo, não temos marcação de eletrocardiograma (ECG). As pessoas chegam e fazem-no no próprio dia. A clínica teve de otimizar todo o funcionamento e agora estamos, de novo, a reequipá-la com novos aparelhos, em particular, na área da ecocardiografia com ecografos de topo de gama e 3D de última geração. Além da assistência, também fazemos investigação, por gosto, por formação e porque isso nos mantém atualizados e ativos na nossa profissão. O objetivo sempre foi sedimentar e aumentar a capacidade de resposta, no sentido de crescer como uma referência de qualidade na região. Apostamos em afirmar a nossa marca, que não é propriamente igual a muitas outras, na área da cardiologia clínica, não-invasiva, de diagnóstico e terapêutica, e também na área da prevenção. Somos uma clínica real que vai ao encontro das necessidades da população.
Outro aspeto diferenciador é a aposta na prevenção em cardiologia. Porquê?
O investimento em prevenção cardiovascular poupa vidas e recursos económicos. A prevenção é uma atitude, uma maneira de estar das sociedades inteligentes. Apesar de em todo o mundo, e em Portugal também, a mortalidade por doença cardiovascular ser superior à oncológica, toda a prevenção que se aplica a nível cardiológico, aplica-se também à prevenção oncológica. Hoje é do conhecimento geral que o sedentarismo, o excesso de peso, a falta de exercício físico são fatores de risco. Na parte oncológica, as pessoas ligam muito mais aos exames e fazem-nos atempadamente para detetar a doença. A emoção relacionada com o cancro é muito negativa, de sofrimento, e assusta as pessoas. Mas apesar de tudo, morre-se mais de doença cardiovascular. Há hoje uma faixa de doentes que têm patologia cardiovascular como a hipertensão, a pré-diabetes, e que está a ser portadora de uma doença cardiovascular que pode ainda não dar sintomas, mas que quando se chega à faixa dos 50 a 60 anos, há as consequências dessas doenças no organismo. Infelizmente, são estes doentes que cada vez mais nos chegam. É natural que o SNS não consiga dar resposta. Os hospitais estão vocacionados para a medicina curativa e não para a preventiva. Além disso, a medicina geral e familiar não tem capacidade para responder eficazmente a este grande desafio. Atitudes preventivas básicas como não ao tabaco, redução do sal, mais exercício físico, alimentação saudável são conhecidos por todos, mas pouco cumpridos pela população em geral. Existem ainda outras medidas como o tratamento do colesterol, da hipertensão arterial, da diabetes, e redução do peso. Temos também outros meios de diagnóstico, tal como acontece com o cancro, e que são os exames cardiovasculares que nos permitem identificar alterações do sistema, umas vezes mais cedo, antes dos sintomas aparecerem, outras mais tarde, mas que de qualquer forma podem permitir a tomada de medidas atempadas para tratar e impedir a evolução da doença.
Pode explicar um pouco melhor?
Há muitas informações sobre prevenção que temos necessidade de passar porque a população está, apesar de tudo, pouco esclarecida. Embora de extrema importância, já passámos a fase de falar somente dos malefícios do sal e do tabaco. Hoje, temos de passar outras mensagens. Por exemplo, quem tiver hipertensão vai ter mais risco de vir a ter doença cognitiva. Isto é, vai ter mais risco de vir a ter algum grau de demência. Prevê-se que a curto prazo, a demência venha a ser um problema social e de saúde pública de grande importância. A prevalência de demência tem vindo a aumentar nos grupos etários mais avançados. São dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) que, em 2013, publicou um texto (a global brief on hipertension) simples de ler, que às vezes mostro aos meus doentes. A hipertensão não é apenas a «tensão arterial alta». É também uma doença vascular e cardíaca. Os valores elevados de tensão arterial são uma manifestação da doença. É um objetivo prioritário para a OMS combater a hipertensão arterial que está por detrás de grande parte das causas de morbilidade e mortalidade cardiovascular. É também responsável pelo Acidente Vascular Cerebral (AVC), pelo enfarte do miocárdio, pela insuficiência cardíaca. As doenças cardiovasculares resumem-se a uma espécie de bolo em que os conteúdos estão todos lá: a hipertensão, a dislipidemia (colesterol), a diabetes, o sal, o tabaco, a falta de exercício físico, o excesso de peso. O problema é que vemos os nossos doentes passarem por aqui, sem terem a noção que estão a alimentar uma doença que lhes irá degradar a saúde e contribuir para a redução de anos de vida. Eventualmente, ao invés de viverem até aos 60 ou 70 anos, poderiam viver até aos 80 ou 90 com muito melhor qualidade de vida.
As doenças cardiovasculares não são uma consequência da idade?
Isso é um falso conceito. Claro que quanto mais anos vivermos, mais risco teremos de ter essa e outras doenças. Biologicamente, o ser humano terá uma longevidade ideal de 120 anos. Nós é que vamos delapidando esta idade, principalmente por causa das doenças cardiovasculares, oncológicas e pelas alterações a nível da informação genética que vamos sofrendo com as viroses e outros agentes, como a poluição ambiental. Em determinado momento das nossas vidas «algum travão», que impedia o gene de expressar a doença, desaparece. Mas devo dizer que o Acidente Vascular Cerebral (AVC) é em Portugal, a causa número um de morte cardiovascular. Tem a ver com os nossos hábitos. Somos o país da Europa que mais sal consome. A redução do sal no pão pela lei que saiu há alguns anos, e que foi tão contestada, reduziu significativamente o número de AVCs por ano. Imagine o que isto representa. Parece uma coisa simples. Também a lei para taxar as bebidas açucaradas como os refrigerantes espera-se que irá ter efeitos benéficos na prevalência da Diabetes. A Diabetes tipo II é uma doença responsável por uma importante percentagem de mortalidade a nível mundial neste século XXI. E mata como? A maior parte das vezes através de doenças cardiovasculares. Em resumo, sabe-se hoje que as doenças cardiovasculares têm três grandes responsáveis: a genética (ou seja aquilo que herdamos) e que terá um grau de responsabilidade de cerca de 20 a 30 por cento, os fatores ambientais como a poluição e que cada vez têm mais importância, e os nosso maus hábitos, que contariam um adequado estilo de vida saudável. A tecnologia permite detetar estes problemas com alguma antecedência, certo? Promover a saúde deve ser uma responsabilidade inerente a cada cidadão. Há outro tipo de atitudes de prevenção que passam por calcular o risco de vir a ter uma doença, através da história clínica e familiar de cada indivíduo e de análises e exames cardiovasculares. Depois de calcular esse risco é possível definir uma estratégia para prevenir e tratar as eventuais consequências. Se for identificada alguma coisa errada, poderemos prevenir o futuro com melhor sucesso. Na clínica vemos muitas pessoas mal orientadas, não aderentes às terapêuticas e por isso a evolução das doenças, infelizmente, chega a fases mais avançadas. Muitas pessoas são portadoras de doenças cérebro-cardio-vasculares e não o sabem. É aqui que tem de se fazer a aposta, na sensibilização que estas doenças são silenciosas, evoluem durante décadas e que de repente aparecem os sintomas ou os eventos, que podem ir desde o pequeno até ao catastrófico AVC ou ao enfarte do miocárdio.
Porque diz que o SNS não está a responder bem aos problemas do coração no Algarve?
Exerço cardiologia no Algarve desde 1986 quando ainda vinha de Lisboa para semanalmente dar consultas em Lagos e Portimão. Nessa altura, o apoio de cardiologia a nível estatal era muito diferente. Nos consultórios privados procuravam-nos doentes em situações que justificavam o imediato internamento nos hospitais para que se pudesse oferecer a necessária ajuda. Com a progressiva melhoria das condições logísticas e humanas foram oferecidas à comunidade e à população em geral condições que praticamente fizeram desaparecer dos consultórios estas situações atrás descritas. Infelizmente, nos últimos anos, passámos a tê-las novamente na nossa prática clínica diária. Começamos a ter uma maior afluência de doentes em pior estado de saúde à procura de uma solução. Isto é a realidade do dia a dia e mostra que a população não encontra as mesmas respostas que tinha antes. Não é alheia a atual desestruturação, menor ou maior, do Serviço Nacional de Saúde. Não está em questão, como já referi, a competência dos profissionais de saúde, está em questão a organização das instituições. Os nossos profissionais em situações com melhor organização dão sempre uma resposta de qualidade; são exemplos os que trabalham em outros países e que são sempre tão elogiados. Pergunta-se então, porque é que aqui a situação é diferente?
Apesar de ser uma clínica privada, a Gago Leiria privilegia a responsabilidade social, certo?
Em 1986, quando cheguei ao Algarve, não havia hipótese de realizar exames cardiovasculares pelo Serviço Nacional de Saúde. As pessoas, ou faziam os exames pelo privado, ou não faziam, ou tinham de se deslocar a outras regiões do país. Fui o primeiro cardiologista no Algarve a trabalhar com convenção com o SNS, incluindo consultas. Desde essa altura, implementámos uma componente social e humana. Oferecemos informação cardiovascular incluída em exames a pessoas carenciadas. Não nos limitamos a executar exames, temos, com base na informação obtida, orientado muitos doentes para de forma mais rápida poderem resolver as suas situações. Sabemos que tem feito projetos junto das escolas do Algarve… Temos mantido uma colaboração com quem nos solicita, quer através de palestras, quer de workshops ou cursos de formação. Recentemente iniciámos num agrupamento de escolas com a colaboração dos respetivos responsáveis o projeto «Falar ao Coração» sobre a égide da Fundação Portuguesa de Cardiologia, da qual sou o presidente da delegação do Algarve. Reunimos com um conjunto de professores. A nossa ideia é abordar vários assuntos, por exemplo, o que é Pressão Arterial, Hipertensão Arterial, o que é a doença das coronárias? Sendo os professores do Ensino Básico e Secundário, os segundos pais, faz todo o sentido serem capazes de transmitir estes conhecimentos de forma organizada. Já tivemos uma experiência muito proveitosa em Lagos e estamos a abertos a fazer mais noutros pontos da região. Enquanto não se mudar a matriz dos comportamentos, não se muda o destino das pessoas. Por outro lado, desde há sete anos que as Jornadas de Cardiologia em Medicina Geral e Familiar se realizam no Algarve. Apostamos no diálogo e partilha de conhecimentos com os médicos de família. São eles que escolhem os assuntos para discutirmos, de forma a analisar e otimizar métodos de diagnóstico e tratamento. Temos essa incumbência. Sentimo-nos com vontade de partilhar conhecimentos atuais e transmiti-los de uma forma clara e prática.
O Barlavento algarvio «é discriminado» na Cardiologia
«O Barlavento está discriminado», diz José Coucello, médico cardiologista e um dos mentores da clínica Gago Leiria. Isto porque, a convenção com o Sistema Nacional de Saúde (SNS) na área da cardiologia só existe no Sotavento. «Atualmente, 31 anos depois, verificamos uma chocante situação de desigualdade de acessibilidade à saúde da população algarvia. Ninguém toca no assunto, mas um habitante do Barlavento tem de se deslocar ao Sotavento para efetuar um simples electrocardiograma, uma Prova de Esforço ou um exame Holter de 24 horas. Sabendo da inexistência de meios de transporte públicos eficazes, isto significa que esses indivíduos terão de perder, em muitos casos, cerca de um dia inteiro e despender de valores que para alguns são insustentáveis. A desigualdade ainda é mais evidente quando se compara o Algarve com outras zonas do País».
Uma referência na região
Em 1988, José Coucello trouxe a família para o Algarve. Hoje os filhos «sentem-se algarvios de gema», brinca. Em 2008, juntamente com o colega cardiologista Professor Doutor José Azevedo adquiriu a Clínica Gago Leiria fundada no início da década de 1990 pelo cardiologista que lhe atribuiu o nome. Com sede em Faro e instalações em Portimão, a clínica centra-se na prestação de cuidados de saúde cardiovasculares diferenciados de qualidade. Uma preocupação da equipa clínica é diagnosticar situações «subclínicas» por não manifestarem ainda, no indivíduo, sinais ou sintomas. Atualmente conta com cerca de 40 colaboradores e a prestação regular de alguns dos melhores especialistas nacionais.