Trava-se uma batalha cívica para evitar que esta vila se torne definitivamente um lugar vulgar igual a tantos outros. O que resta de harmonia e de identidade está agora em risco de se perder para sempre. É que o património destruído já não é recuperável e a Câmara não compreende a importância da sua preservação.
A situação foi despoletada devido a um plano de reabilitação urbana da rua Gago Coutinho, com intervenção nos arruamentos e com uma atualização da rede eléctrica e enterramento dos fios que atualmente estão suspensos no cimo das fachadas. À priori, tal situação não augurava nada de preocupante.
Contudo, aquela máxima que se aplica aos nossos autarcas (na área do ambiente, do património e da cultura), revelou-se mais uma vez certeira: «eles, às vezes, até têm boas intenções, só que não acertam uma!» Esta máxima transita geralmente para outra: «onde mexem, estragam!»
Ora, o que supostamente seria reabilitar, rapidamente passou a ser um processo de desmando trágico-cómico, tal o desvario do que se foi assistindo com a implantação de 18 armários da EDP nos sítios mais inconvenientes, inclusive tapando socos e cantarias em pedra. Um deles oculta o que foi outrora a entrada da histórica Farmácia Passos. Isto é, estamos perante a desfiguração do património por armários instalados para assegurar a eliminação total dos fios nas paredes mas que, afinal, dadas as características das operadoras de telecomunicações, sabe-se que nunca o poderão garantir a cem por cento.
Foram, também, feitos cortes em pedras de cantaria e abriram-se roços enormes nas paredes sem aviso prévio dos proprietários. E, em vez de usarem a mistura de cal e areia, única compatível com as alvenarias tradicionais para rebocar os roços, usam cimento, ficando assim visíveis uns remendos miseráveis. A isto somam-se as horríveis caixas de plástico dos contadores da eletricidade.
Nos países civilizados tais caixas, colocadas nos centros históricos, são concebidas para uma integração adequada. A EDP comprova, em todas as situações, que não tem nenhuma sensibilidade relativamente ao ambiente e ao património.
E ainda há mais: tubos de PVC pretos a treparem pelas paredes para assegurar a iluminação pública. Pretendendo-se acabar com os fios nas fachadas conseguiu-se multiplicá-los. Mas a cereja no cimo do bolo é a determinação do executivo em decorar os armários com propostas artísticas, para supostamente minimizar o seu impacto. No meio disto tudo onde fica o espírito do lugar do centro histórico? Fica soterrado pelos destroços de um autêntico carnaval de fios e quinquilharia visual que condiz bem com a emissão ininterrupta de música, no Largo de S. Sebastião, ali ao lado.
Para sermos rigorosos há que reconhecer que a identidade de S. Brás de Alportel é uma sombra do que era ainda não há muitos anos. Quando no litoral algarvio a destruição da paisagem, da arquitetura e das praias já estava consumada, aqui sobrevivia um mimoso centro histórico quase intacto, e que expressava de forma eloquente a essência do barrocal.
Há dois anos, quando aqui voltei, fiquei profundamente chocado com o seu grau de descaracterização e perda da genuinidade arquitetónica. É de pasmar como os sucessivos executivos não souberam cuidar, nem um milímetro, da salvaguarda desta zona da vila outrora tão singular e tão bela. Penso que nem se aperceberam da sua progressiva deterioração apesar de terem criado uma Comissão Municipal de Preservação do Centro Histórico. Pergunto então, para lá da sigla sonante, para que serve tal Comissão?
O centro histórico foi-se degradando, quer pelo desinvestimento dos proprietários, quer pela intervenção dos que introduziram novos elementos nas fachadas – alumínios, tintas plásticas, cores desadequadas, “azulejos de casa de banho”, etc., e foram rasurando elementos notáveis. A substituição das janelas e portas de madeira foi-se intensificando sem que a Câmara fizesse (ou quisesse fazer) frente à descaracterização crescente.
Tudo isto explica-se, principalmente, pela pura ignorância e arrogância do poder local. A seguinte frase de um dos cidadãos, Graça Passos, que estão mobilizados para contestar estas arbitrariedades, explicita aquilo que as nossas autoridades, nas suas limitações, nunca conseguirão entender: “O que veneramos nas zonas históricas é a possibilidade de aceder a um tempo diferente do nosso carregado de sobriedade, silêncio e beleza que só a lentidão, hoje desaparecida, sabe criar”.
Fernando Silva Grade | artista plástico