O excelente painel colocado pela Câmara Municipal de Olhão na Avenida da República, com fotografias a preto e branco do lendário fotógrafo Artur Pastor, representando a extraordinária arquitetura de Olhão e que desta forma ficou, ainda quando íntegra, eternizada a tempo de o seu rasto não se desvanecer para sempre dos registos da História, coexiste, em algumas dezenas de metros, com o acto vandálico da demolição de uma casa que, além de carrear uma depurada e opulenta representatividade da arquitetura cubista, foi sede de uma histórica coletividade local – a última de uma série das centenas de casas tradicionais que têm sido demolidas nos últimos anos e que, ironicamente, muitas delas estão retratadas nos ditos painéis.
O despudorado slogan «Olhão tem alma» que a mesma Câmara se apropriou para propagandear como léxico do politicamente correto a pretensão da cidade reivindicar o reencontro com a sua essência desavinda, comprova com veemência a retórica da pós-verdade que permite que qualquer enormidade possa ser soletrada com total naturalidade e impunidade.
Nos livros de História podemos encontrar em grande quantidade episódios de destruições maciças de cidades e de monumentos no contexto de guerras e invasões, algo que a muito arcaica raça humana se dedicou com denodo desde que o advento da civilização cavou desigualdades de bens e de castas.
A História da humanidade pode sintetizar-se no abarcamento de três situações: guerras, exploração do homem pelo homem e arte e conhecimento. Estes dois últimos itens são os únicos que abonam em termos positivos em favor da dita criatura.
No mundo que se globalizou, criando uma circunstância nova no percurso histórico, muita coisa mudou, umas para melhor outras para pior.
Dentro das coisas boas, há que pôr em evidência a diminuição dos conflitos e violência entre países, de que a Europa é um bom exemplo, criando, desta forma, condições para um certo e inédito tipo de segurança. Isto permitiu a proteção (e valorização), nunca antes conseguida como agora, de uma das duas coisas boas da civilização humana: a arte, nomeadamente o património monumental e arquitectónico. As únicas situações que têm constituído excepções a este estado de coisas têm sido as decorrentes da ação de movimentos extremistas, tais como o Daesh e os Talibans: a implosão dos Budas de Bamiyan, as destruições em Tombouctou e a recente vandalização de Palmira, situações que muito chocaram a comunidade internacional.
Contudo, neste mundo em acelerada mudança e sujeito ao aparecimento, com demasiada frequência, de bizarros e imprevistos fenómenos, desenvolveu-se nas últimas décadas nos países subdesenvolvidos, dos quais Portugal faz parte, um processo totalmente absurdo, mesmo se comparado com padrões de épocas históricas antanhas: a destruição do património das cidades, não por entidades externas (guerras, invasões e saques), mas pelos próprios governantes e população locais.
Vamos pegar no exemplo de Olhão que ilustra na perfeição esta circunstância.
O olhanense, filho do mar, e que ainda há poucos anos formigava no cais sobranceiro à Ria, prenhe de pitorescos e orgulhosos barcos multicolores, numa azáfama de redes, peixes, alcatruzes, covos, fogareiros e litão ao sol, que se esgueirava em misteriosa e sinuosa medina, que subia à açoteia por entre arcos e escadarias, que escalava o secreto pangaio e que contemplava sonhadora e majestosamente do alto do mirante, correntes, marés e ventos, retirou-se para a periferia e deixou também, sem oferecer resistência, que uma espoliadora marina (mais resorts associados) expulsasse o pescador do lugar nobre que lhe pertencia, emparedasse as vistas da Ria e estilhaçasse com a sua violência standard o espírito da maresia.
Retirou-se para a periferia, manipulado e enganado, totalmente crente de que o cimento é a encarnação ipsis verbis do progresso, palavra-passe de acesso ao paraíso, e que as casas antigas são velhas, não prestam e não merecem perdão. Periferia em crescendo que completa o anel constritor que se vai apertando sobre o centro da cidade, cada vez mais atrofiado e esmifrado, na mancha de cimento (tão poluidora como mancha de petróleo) que para lá da Estrada Nacional 125 vem arrasando todos os «Budazinhos de Bamiyan» que se lhe atravessam no caminho: casas, chalets, açoteias, platibandas, chaminés, cantarias, abóbadas, marmoreados, pátios, portas lavradas, ferros forjados, numa omnívora destruição que lembra recentes acontecimentos em paragens orientais – o selvático subúrbio já sepultou parte significativa da cidade genuína, exótica e belíssima!
Tal como o Português-tipo atual, o olhanense aculturado esconjura, como visão diabólica, qualquer simulacro do terrunho ancestral, da organicidade matricial, da memória patrimonial. Habitando um appartement, empoleirado na marquise (não mais no mirante) com vista privilegiada para a via-rápida, para os engarrafamentos e com um pouco de sorte para um acidente de viação (não mais para o mar), o olhanense empilhado, que resfolega por entre plasmas e WhatsApps, Cristinas Ferreira e passeios ao Shopping, futebóis e pasquins e que se prosterna e morde o pó diante do Deus-popó, está longe, muito longe, de poder saber o que é património, de intuir o que é a alma da cidade, de sentir o espírito do lugar, ou de se condoer com chaminés derrubadas por caterpillars.
Quanto às sucessivas Câmaras Municipais que têm governado Olhão nas últimas quatro décadas, e primeiros e grandes responsáveis pelo descalabro urbanístico da cidade, muito já foi dito. Trata-se de gente insensível que já demonstrou, à saciedade, que se está nas tintas para o património, e cuja visão míope foi incapaz de perceber que Olhão era uma excepcionalidade arquitectónica – um património da humanidade! Prisioneiros da sua pequenez, inaptos para discernir a mais pequena nuance de beleza e de sentimento, urdem nos bastidores jogatinas de um xadrez viciado e batoteiro cujo desfecho é invariavelmente sempre o mesmo: a destruição de tudo o que luza humanidade. Tal como os Talibãs!
Fernando Silva Grade | Artista Plástico