Temos assistido ao longo dos anos à aniquilação, sem apelo nem agravo, da arquitetura tradicional em Portugal. O que ainda não foi demolido, ou está em ruínas, ou foi deploravelmente descaracterizado, não restando quase nada dos pressupostos que caracterizavam os nossos edifícios antigos.
Em Faro, que ainda detém uma extensão de casco tradicional relevante, assistiu-se, numa primeira fase, ao abandono e degradação dos edifícios antigos e, numa segunda fase, que decorre hoje, a uma onda de reabilitações lastimáveis sem a mínima consideração pela identidade e autenticidade desses edifícios, com a utilização de procedimentos técnicos totalmente errados juntamente com materiais incompatíveis e lesivos da integridade estética e construtiva dos mesmos.
Tal situação resulta, como amplamente tenho denunciado, da inexistência de regulamentos adequados às zonas históricas, abrindo espaço para todo o tipo de iniquidades interventivas, da qual resulta a transfiguração de jóias arquitetónicas em autênticos abortos.
Em qualquer país civilizado tal seria impensável, sendo os centros históricos lugares preciosos, meticulosamente defendidos e preservados.
Os regulamentos são rigorosos tendo porém as autoridades locais, em contrapartida, responsabilidades extensas no apoio aos moradores no que respeita à oferta dos suportes técnicos e logísticos para uma reabilitação e manutenção adequadas.
Para tentar alterar esta derrapagem acelerada que impera no centro histórico de Faro, a arquiteta Teresa Correia, vereadora do urbanismo na Câmara Municipal de Faro, consciente da necessidade de criar exemplos demonstrativos de boas práticas de reabilitação que quebrem o ciclo do desvario, apostou em levar adiante uma reabilitação exemplar bem no centro da cidade, tendo presente que os bons exemplos, pelo carisma que carregam, são potenciais transformadores de paradigma.
O edifício escolhido, situado na rua D. Francisco Gomes, e que afetava um estado assinalável de degradação, era portador de uma relevante qualidade arquitetónica. Ainda assim, pasme-se, tal edifício esteve para ser demolido (parece que já foi esquecida a assassina demolição do BNU, mesmo ali ao lado), não fosse a intransigência, contra tudo e contra todos, da vereadora do urbanismo.
Depois desta primeira conquista determinou-se que o edifício fosse reabilitado segundo os procedimentos corretos. Dessa forma procedeu-se à cobertura da fachada com um reboco à base de cal e areia, sendo, finalmente, coberto por um barramento, revestimento exterior tradicional composto por cal, areia e pigmento natural e que constituiu um facto histórico já que esta técnica não era utilizada em Faro há mais de meio século.
Por último conseguiu-se que não fossem utilizados alumínios nos caixilhos das janelas, material altamente dissonante e inestético.
Quero ainda salientar a colaboração dos proprietários neste processo, já que a isso não eram obrigados, pois o pífio regulamento do centro histórico dá espaço a que quase todas as barbaridades possam ser feitas.
A primeira fase dos trabalhos decorreu muito bem e, durante vários dias, contemplei com satisfação o edifício já terminado, embora ainda sem as portas e as janelas: a cor ocre, cheia de matizes, de uma suavidade e luminosidade marcantes; a agradável textura táctil da superfície do reboco; as formas arredondadas e escultóricas das cornijas, acentuadas pelo branco inigualável da cal. Mas o que realmente impressionava era a expressão orgânica que emanava dos volumes, revelando a essência da arquitetura algarvia: uma arquitetura de terra.
Há dois dias ao passar por lá, constatei que já tinham colocado os caixilhos nas janelas. Precisei de alguns minutos para processar a visão com que me deparava, pois era difícil de acreditar naquilo que os meus olhos revelavam.
As janelas, no contexto de uma casa, são de uma importância fulcral: são os olhos das casas.
Tradicionalmente sempre se colocou um grande cuidado na manufactura dos caixilhos das janelas. Pergunto, pois, porque não se seguiu a lógica do desenho originário, que era garantia de sucesso total, e se optou por uma improvisação anedótica de bradar aos céus? Sim, porque as configurações dos caixilhos adotadas só têm um nome: uma aberração monumental!
Temos, assim, uma dissonância gritante nas janelas, contradizendo, a direção em que todo o projeto caminhava: o resgate da essência e da aura da arquitetura tradicional. Neste momento o edifício debate-se em insanáveis contradições formais que o impedem de vibrar.
É uma pena que este edifício, que poderia constituir um marco histórico na reabilitação algarvia e portuguesa, um caso exemplar digno de figurar nos livros, tenha morrido na praia, de forma inesperada e inglória.
É de saudar, ainda assim, o esforço que esta tentativa mobilizou e as várias pessoas nele envolvidas, destacando, sobretudo, o grande empenho e determinação da vereadora do urbanismo que não merecia este desfecho.