Clara de Sousa Vicente é mais uma artista nascida fora desta região, mas filha adotiva do Algarve por paixão e escolha. Nasceu e cresceu em Alenquer, onde o pai fazia azulejos decorativos esmaltados, numa fábrica. Com os pedaços de barro que ele lhe trazia, brincava a fazer figurinhas. Uma delas faz parte do quadro com a carta ao principezinho, que pode ser vista na exposição «As vozes dos Anjos e as palavras do Principezinho», patente até ao fim deste mês na Casa Manuel Teixeira Gomes, em Portimão.
Cresceu e, naturalmente, veio o curso na Escola de Artes Decorativas António Arroio, Arte e Técnica de Tecidos e Artes do Fogo, aprendizagem com vários ceramistas internacionais, cursos de pintura e «acima de tudo, 30 anos de experiência dentro do atelier», que define como local de trabalho, desarrumado, que não gosta de mostrar. Mas acaba por fazê-lo, se alguém desejar ver o seu trabalho mais ao pormenor. E que se situa no centro de Monchique, vila que adotou como sua, há quase 20 anos, por paixão. «É um local de muita paz, que permite a comunhão com a natureza, onde nos podemos esconder para nos inspirarmos. Por isso estão a aparecer novos artistas, à procura dessa paz».
Clara Vicente define-se como ceramista tridimensional. «Utilizo azulejos do século XVII, azuis e com aquele tom creme. Trabalho o barro, sem moldes, tudo o que pretendo colocar-lhe em cima. A pintura é secundária. Sofrem depois várias fases de cozedura e as peças são fundidas, ou seja, coladas por ação do fogo, a temperaturas que podem atingir os 1100 graus centígrados. Os quadros também levam papéis e tecidos e contam histórias».
Fez várias exposições, das quais destaca uma em Londres, integrada num lote de 20 artistas portugueses, que foram selecionados por concurso. Exposições individuais em S. Jorge, Açores, Galeria Municipal de Arte de Barcelos, em França, Lambal e St. Étiènne.
A Exposição «Vozes dos Anjos e Palavras do Principezinho», que pretende lançar como itinerante, começou em Barcelos, sem a voz dos anjos. Clara de Sousa Vicente explicou ao «barlavento» que «as palavras e as imagens estão sempre comigo, quando concebo um painel de azulejos na minha cabeça. E vem sempre acompanhado por uma história, minha ou adaptada de um livro. Enquanto materializo, vou escrevendo frases que me vêm à cabeça».
Clara também é poetisa, mas esconde a sua poesia, não a mostrando do modo usual. Contudo, vai atirando fragmentos da escrita, sobre a sua cerâmica, trazendo-a à luz do dia, como se fosse sem querer. Considera a sua obra didática e dirigida aos mais pequenos e «às crianças interiores que os adultos não devem perder dentro de si».
Além das suas vozes de «anjos interiores», trouxe duas bem reais à inauguração da exposição em Portimão: a soprano Carla Pontes, «uma voz de anjo que me inspira», e a poetisa Glória Marreiros, «outra voz de anjo na sua poesia. De um soneto seu saíu uma obra para a exposição».
Esta artista faz voluntariado «sempre que a vida me permite. É um desafio e, embora necessitem de nós, quando regresso, sinto que precisei muito mais deles. Venho de alma cheia, por tudo o que me dão. Até o modo como relativizo tudo, hoje em dia, é fruto dessas experiências».
Durante uma ação de voluntariado na Libéria, após 14 anos de guerra, acabou por fazer um curso de pintura com um artista local, «porque não posso estar mais de três dias sem pintar ou modelar. As aulas tinham lugar no topo de um prédio todo esburacado pelas balas, enquanto ele ia contando histórias da guerra e da família».
Noutra ação, na Guiné-Bissau, aprendeu pintura a acrílico. «Gosto de envolver-me com a comunidade local, que tem muito para me ensinar». Fazendo voluntariado num hospital de Franciscanos, criou a «Estrela Ó-Ó, que eu concebi e os artesãos locais fizeram em tecido. Tinha um guizo lá dentro. Oferecemos, pelo Natal, aos filhos com menos de dois anos de mães seropositivas que faziam rastreio no hospital. Embalámos quinhentas crianças com essa estrelinha», diz-nos com uma ponta de ternura e melancolia, acrescentando que deseja regressar à Guiné-Bissau.
Como projeto imediato, temos árvores. «As amendoeiras do Algarve, que estão a desaparecer, e as laranjeiras. Nos meus quadros, serão adubadas com corações, numa manifestação de muito amor». Outras exposições estão na forja e Clara de Sousa Vicente está aberta a convites para expor.