O primeiro alerta chegou, no início da semana passada, pela voz de Ângela Rosa, agricultora biológica e militante de uma cidadania ativa, dando conta do abate de 17 hectares de pomar ancestral em Santo Estevão, concelho de Tavira, com o objetivo de ser instalada uma exploração intensiva de abacate. Uma situação reconhecida agora pela associação Almargem.
«Em Tavira, Cacela e outros pontos do Sotavento algarvio, supostamente uma das áreas-chave da Dieta Mediterrânica em Portugal, sucedem-se os atentados contra o coberto vegetal tradicional, um dos fundamentos da classificação pela UNESCO deste conceito cultural como Património da Humanidade. Nos últimos anos, o Vale da Asseca, incluído no Aproveitamento Hidroagrícola do Sotavento, tem sido um dos alvos principais desta maré sempre crescente de destruição da paisagem mediterrânica ancestral, com sucessivos terraceamentos das encostas e ripagens de alto-abaixo dos cerros, essencialmente para cultivo de laranjais e vinha, pondo em causa os importantíssimos valores naturais desta zona», denuncia a direção da Almargem, em nota enviada às redações, na segunda-feira, 7 de agosto.
«Outro caso bem conhecido localiza-se na Torre d’Aires sítio arqueológico romano, um dos mais importantes do Algarve, o qual tem vindo a ser arrasado desde há décadas para fins agrícolas de caráter intensivo, com a complacência das autoridades, que autorizaram a instalação no local de estufas para cultivo de frutos vermelhos. Neste, como em muitos outros locais, a técnica usada é a hidroponia, a qual, além de implicar a decapagem e compactação total do solo, tem implicações ambientais graves incluindo a poluição das águas».
Mas «as principais vítimas deste verdadeiro assalto à paisagem agrícola tradicional do Sotavento, têm sido os pomares de sequeiro que, durante séculos, permitiram aos algarvios sobreviver por entre as sucessivas crises económicas do país, e que estão, hoje, na mira de investidores sem escrúpulos para quem o solo e a paisagem rural são coisas sem qualquer importância», acusa a Almargem.
«No sítio da Fábrica (Cacela-a-Velha) foram, há algum tempo atrás, abatidas várias oliveiras e alfarrobeiras centenárias, caso ainda mais grave uma vez que o local está incluído no Parque Natural da Ria Formosa. Mas a circunstância de também se inserir no Aproveitamento Hidroagrícola do Sotavento, confere-lhe todo um regime de excepção, o qual, segundo o entendimento do ICNF, isenta esta zona de quaisquer obrigações de realização de um pedido de autorização para as atividades agrícolas que impliquem alteração ao relevo natural, corte de arvoredo existente e drenagem de terrenos, incluindo a instalação de estufas. Entendimento contraditório este pois, de acordo com o Plano de Ordenamento do Parque Natural da Ria Formosa, estas áreas, nas quais se incluem grande parte dos terrenos situados entre Tavira e Cacela, correspondem a áreas de enquadramento, transição e amortecimento de impactes ambientais, onde se preconiza justamente a manutenção das zonas agrícolas compatíveis com valores naturais, bem como a conservação e valorização da paisagem (Artº 34º)».
A Almargem «não está obviamente contra o desenvolvimento e a valorização da atividade agrícola, porém repudia profundamente esta situação de vale tudo, a qual considera inaceitável e que atenta de forma grosseira contra o património paisagístico da região».
Neste sentido, «faz um apelo urgente às entidades com competência sobre todo este território, como a Direção Regional de Agricultura, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas e os responsáveis autárquicos locais para que assumam uma atitude mais ativa e crítica no que respeita ao incremento dos projetos de produção agrícola não-tradicional, em detrimento de áreas com vegetação natural, pomares de sequeiro e outros terrenos de cultivos tradicionais, que devem ser preservados. A Almargem apela à Assembleia da República e ao governo para que procedam a uma alteração legislativa com vista a reverter o regime de exceção obsceno dos Perímetros de Rega e Aproveitamentos Hidroagrícolas, cuja manutenção, tal como está, se revela lesiva do património natural e da identidade paisagística da região», lê-se ainda na nota.
Caso estas entidades «nada façam e esta situação se mantenha inalterada, a Almargem vai congregar esforços junto de todos os defensores da Paisagem Mediterrânica do Sotavento para elaboração de um dossier que inclua os mais recentes atentados aí perpetrados, o qual será enviado à consideração do Comité do Património Mundial da UNESCO».