Alexandra Gonin vendeu o apartamento em Paris para comprar a antiga residência da família Cocco, na Rua das Lavadeiras, em Olhão. Atriz e bailarina clássica, promete recuperar o edifício, aos poucos, com as próprias mãos. Vai ser «A casa artística» um centro cultural aberto à comunidade. Para já, também salvou uma memória esquecida da história da cidade.
«Em maio do ano passado, quis trazer a minha mãe de férias a um sítio que fosse espetacular. A ideia era visitar vários locais, desde Faro até Espanha». Não foi muito longe. «Passámos algumas semanas aqui em Olhão, e, posso dizer que apaixonei-me logo», começa por dizer Alexandra Gonin, 49 anos, ex-bailarina da Ópera de Paris. Então, «vi algumas casas pequenas à venda, mas, no último dia, antes de regressar, alguém nos mostrou este edifício incrível de 1923. Assim que cheguei vendi o meu apartamento e telefonei a avisar que queria comprá-lo», conta.
«Sempre tive o projeto de um dia criar uma residência para artistas, mas não pensei que pudesse avançar tão rápido», admitiu. Com uma carreira reconhecida no seu país, Alexandra Gonin tem uma grande rede no universo cultural francês, que quer, em breve, desafiar a conhecer Olhão. Tornou-se assim uma embaixadora inesperada da cidade. «Atores, pintores, cantores, escritores, conheço muita gente criativa, de toda a Europa. Gostaria muito que viessem até cá, e pudessem trabalhar em residência artística», de preferência, «que possam partilhar com a comunidade».
Mas primeiro que tudo, as portas abrem-se a quem cá está. Na sexta-feira, 10 de março, inaugurou a primeira mostra coletiva no rés do chão, um antigo espaço de trabalho. As paredes estão cruas e as condições são mínimas, mas há uma energia que parece, também ela, fazer parte do edifício. Quem passa espreita, e há quem se atreva a entrar para ver os quadros que retratam interiores. Na maioria, de casas como esta. Enérgica, Alexandra Gonin continua a explicar o projeto. «Não sei muito sobre a vida da família Cocco, mas vamos tentar fazer um pequeno livro com fotografias antigas e também para contar como foi o processo de conservação e de restauro. Ali, na entrada, queremos ter um mural onde possamos ter memórias do que se vai fazendo aqui. Por exemplo, se algum autor um dia escrever aqui um poema, queremos que fique disponível para quem o quiser ler ou comprar. Se tivermos um músico que aqui vem gravar canções, ou um concerto, queremos ter a gravação. Quem esteve cá e fez o quê», descreve com entusiasmo.
Referindo a família Cocco, «foram eles que a construíram e ficaram muito felizes pelo facto de a ter comprado. Era uma preocupação, pois não queriam que fosse demolida para dar lugar a mais um prédio» descaraterizado e frio. «São pessoas fantásticas, na verdade, deram-me muito mais do que a sua casa. Deram-me também uma história que merece ser partilhada», promete. O espaço teve vários usos, foi alugado, teve comércio e serviu de armazém. Mesmo assim, restaram algumas latas de conserva com o nome da família italiana. «São fantásticas. Quando viemos cá pela primeira vez, não havia eletricidade e estava tudo escuro. A minha lanterna refletiu as latas e pensei, Meu Deus, são lindas!», brinca. «Quando telefonei a comprar a casa, esse foi um dos pedidos que fiz: quero-a tal como está, e com tudo o que lá está». O acordo foi cumprido.
Bailarina e pedreira
«Não tive tempo nenhum para fazer turismo. Apaixonei-me pela casa, pela cidade, conheci algumas pessoas e tomei a minha decisão», conta. Não se preocupou com a tarefa de recuperar o centenário edifício, porque apesar de ser bailarina clássica já restaurou «sozinha sete casas antigas, ao longo da vida. Teve de ser. Comecei com um pequeno estúdio e depois fui passando para outros maiores», umas vezes ao sabor das necessidades da vida familiar. «Umas porque ficavam mais próximas da escola dos meus filhos, outras porque bem porque precisavam mesmo que alguém lhes desse uma mão. Mas a verdade é que cada uma era maior que a anterior. É uma questão de motivação. Na verdade, dançar o Lago dos Cisnes não é assim tão diferente», brinca.
E já que se fala em ballet, Gonin planeia dar aulas na sua nova residência. «A minha primeira ideia era ensinar num sítio onde houvesse sol. Olhei para o mapa da Europa e vim cada vez mais para sul. Para mim, outro requisito era a questão ambiental. Aqui, felizmente, não temos centrais nucleares, nem indústria petroquímica», o que punha a Andaluzia fora de questão. O outro lado do Algarve «também não, porque fiz muita pesquisa. Já tinha ouvido falar muito do turismo e sei que o lado oeste está cheio de construção moderna. Não queria nada disso», sublinha. Já tinha passado por Sintra, há 10 anos, durante a rodagem de um filme. Na altura, comprou um painel de azulejos no mercado de Alfama. «Nunca encontrei um sítio digno para os colocar. Será nesta casa, de certeza», garante.
Gonin tem um pequeno anexo, que, no passado, terá servido para os caseiros, por isso não terá falta de privacidade quando receber os seus convidados. «Já percebi que há muita coisa que posso fazer além das aulas de dança. Há outros professores na cidade que também podem vir até cá dar aulas, de yoga, por exemplo». Apesar do começo rápido, a francesa não tem pressa de terminar. «Não será um projeto para ganhar dinheiro. Quem quiser fazer aqui exposições, basta que me ajude a pagar a eletricidade. Apenas isso. Isto não é o meu projeto pessoal. É algo para partilhar. Espero que as pessoas venham e possam encontrar algo interessante para contemplar, e que possam sentir-se tocadas pela arte», conclui.
Um tesouro esquecido
Contactado pelo «barlavento» acerca das latas de sardinha e de filetes de anchova da marca «Stromboli», cujo rótulo indicia o fabrico em Olhão por Salvatore Cocco, Victor Vicente, 53 anos, que investiga a indústria conserveira portuguesa desde 2012, não escondeu o espanto pelo achado. «Fiquei surpreendido! Não é muito normal aparecer um espólio assim, ainda por cima de uma marca sobre a qual não tenho registos», disse.
Victor Vicente começou a interessar-se pelo assunto no âmbito de um projeto de restauração, o «Can the Can» no Terreiro do Paço, em Lisboa. «Começou por uma espécie de brincadeira inerente ao restaurante». Começou a procurar informações em revistas, guias, publicidades antigas, e hoje tem mais «de 1700 marcas identificadas que foram fabricadas em Portugal, e 1100 fábricas e empresas» do sector. As históricas latas que encontra são publicadas numa galeria virtual na Internet (http://canthecanlisboa.com/). Soma mais de 1500 e tem outro milhar a aguardar publicação. «É uma forma de dar valor ao passado. Este objetos outrora tiveram o seu auge, guardam memórias, tanto individuais quanto coletivas», justifica.
Ainda sobre o achado em Olhão «a Stromboli deve ser uma marca bastante antiga, porque nunca a vi em lado nenhum e não a conhecia», refere. Na base de dados, contudo, «tenho uma entrada sobre uma marca chamada Isla San Giorgio» que refere o fabricante Salvatore Cocco, «mas não tenho nenhum exemplar e nunca tinha visto uma lata dele», admite.
Com a ajuda da Associação Nacional dos Industriais de Conservas de Peixe (ANICP), Victor Vicente «conseguiu uma autorização para consultar os arquivos do Instituto Português de Conservas de Peixe (IPCP)», um órgão corporativo do Estado Novo, «que regulava o sector e tinha por objetivo divulgar a indústria dentro e fora de Portugal. Todos os fabricantes eram obrigados a ter um número e uma ficha na qual constavam as marcas que detinha». Apesar de não ter este material organizado e sistematizado, Vicente não foi capaz de encontrar referências à empresa de Salvatore Cocco, mas não tem quaisquer dúvidas acerca de sua existência. Aliás, o guia turístico de Olhão, de 1946, tem uma lista de indicações úteis, com os vários negócios da cidade e refere-o na secção dedicada às «conservas de peixe» pelo sal.
No entanto, o «barlavento» teve acesso a um documento de 30 de agosto de 1989, sobre a venda de um prédio na Rua Tomé Viegas Vaz, em Olhão, da sociedade por quotas «F. Cocco Lda». Nos dados relativos à firma, são referidas apenas as marcas registatas «Derthona», «Cocco» e «Tamariz».
Italianos no Algarve
«Pelo que consegui perceber, no final do século XIX, princípio do século XX, várias famílias italianas vieram para Portugal», ligadas à salga de atum e da sardinha. Em Vila Real de Santo António e Olhão, nascem fábricas de conservas em azeite e molhos, por iniciativas independentes, ou de sucursais estrangeiras.
«Desde o início da Primeira Grande Guerra até ao final do conflito que se seguiu, foi o auge das conservas em Portugal. Toda a gente produzia e exportava», diz Victor Vicente. Na verdade, a Fototeca de Lagos tem publicada uma fotografia curiosa. É o registo de um casamento em 1924, de uma família família siciliana, oriunda de Marettimo, que se estabeleceu em Lagos no início do século passado. A legenda é um pouco complicada de interpretar, mas identifica Salvatore Cocco (primo de Paolo Cocco, homem que foi responsável, entre outras realizações, pela construção do Cine-Teatro Império de Lagos), pai de Giuseppe Cocco, nonagenário que ainda hoje vive em Olhão.
A história não é desconhecida de Francisco Castelo, coordenador daquele equipamento cultural. O facto de as latas «Stromboli» serem inéditas aos olhos de hoje, «poderá ter a ver com o facto que a maior parte das pequenas fábricas não tinham valências de rotulagem, de estampar e pintar as marcas deles. Poucas tinham. E então mandavam fazer nas outras maiores. Era uma questão de oportunidade», diz. Sobre a falta de registos nos arquivos do IPCP «também pode acontecer por vários motivos. Há sempre a possibilidade de as latas terem sido feitas, mas não usadas. Pode ter sido um estudo. Ou uma empresa que abriu e fechou logo. Ou então, essas marcas destinavam-se exclusivamente à exportação. E podia acontecer que nunca tivesse sido registada, se fosse para um só comprador», tal como acontece hoje com as marcas de linha branca dos hipermercados.
«Há um Cocco que está nessa fotografia que vai ser médico e que, juntamente com outro lacobrigense, vai representar a importação da penicilina inglesa, em Lisboa», diz. A divisão da família entre Lagos e Olhão «poderá ter a ver com o facto, a dada altura, de Olhão ter um porto de pesca mais interessante do que aqui. Tinha uma variedade maior. Tal como Vila Real de Santo António, além de contar com a sardinha, cavala e biquierão, contava com atum, que muito cedo deixou de ser usado em Lagos. Pode ter a ver com essas dinâmicas. Pode ter a ver com as dinâmicas de território», lembra. Ainda sobre os italianos, Castelo refere Vito Anello, compatriota dos Cocco (sicilianos), que foi mestre de salga da fábrica Fialho entre 1910 e 1921, e «que também acabou por ir para Olhão, onde alugou uma fábrica. Não sei o que aconteceu, se as vicissitudes mudaram, mas acabou por regressar a Itália».
«Há 55 anos a minha mãe trabalhava nas fábricas de conservas de peixe em Olhão. Era operária da fábrica Lázaro. Mas como era comum na altura, emprestaram operárias uns aos outros. Ela trabalhou várias vezes numa das estibas do Cocco, no largo da Feira. Não se lembra das marcas que a empresa usava, mas é óbvio que se as latas estavam numa casa da família Cocco, pertenceriam à sua firma», conclui Francisco Castelo
Identidades gráficas do passado
Uma andaina da Ria Formosa a velejar com o Vesúvio ao fundo do horizonte é uma das ilustrações patentes nas pequenas latas de anchova da marca da marca «Stromboli». As maiores, de sardinha em salga, mostram monumentos de cidades italianas. Uma decoração habitual da época nas conservas para exportação? «Isso é algo que eu gostaria de estudar. Há marcas com nomes enigmáticos, nomes romanos e gregos. Mesmo do ponto de vista da simbologia e das cores, há coisas muito curiosas», diz Victor Vicente.
Por exemplo, a marca «Aremany» fabricada durante a Segunda Guerra Mundial por Arménio Cardoso & Filhos, de Vila Real de Santo António, «tinha avião feito de sardinhas, como logotipo. Parece quase uma ração da RAF», exemplifica. «O que nós queríamos era fazer um estudo da evolução gráfica da indústria conserveira e estudar estes aspetos. Porque é que havia embalagens do mesmo período muito clássicas e outras tinham imagens de paisagens italianas, outras tinham deuses da mitologia grega», compara. «Houve um mestre de litografia que me disse um dia, que era comum em Setúbal os industriais darem nomes de namoradas francesas a determinadas marcas. Eles iam a Paris, ao Molin Rouge, e depois apareciam aí umas marcas com nomes de raparigas. Estes aspetos estão todos por estudar», disse. «É um aspeto muito difícil de estudar, porque a maior parte das litografias das primeiras fábricas, tinha a sua secção de desenho. Aprendia-se o ofício. Não se sabe a autoria da esmagadora maioria das embalagens. Só se conhece a das mais recentes».
Victor Vicente reconhece que a recolha que fez até hoje poderá ser o ponto de partida para um projeto tripartido entre três universidades. Há cerca de um mês contactou a Escola Superior de Artes e Design do Porto, e também a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. A ideia está numa fase embrionária. «Queremos também convidar a Universidade do Algarve. Queremos por um lado, investidores ligados à questão da imagem, mas também da parte histórica e antropológica», revelou. Alexandra Gonin «garante que caso algum museu do Algarve queira uma, estará disposta a dar» um exemplar.
Também contactado pelo «barlavento», Vítor Matias da Associação de Valorização do Património Cultural e Ambiental de Olhão (APOS), explica que já houve a intenção de se criar um Museu da Indústria Conserveira, onde estivessem reunidos os artefatos, equipamentos e tudo o mais ilustrativo desta atividade. A autarquia adquiriu a antiga fábrica Ramires, cujo edificado ainda estava em bom estado. No entanto, a ideia caiu e o edifício acabou por dar lugar ao Auditório Municipal de Olhão. A chaminé é a única memória que resta, «além de uma máquina antiga no exterior à mercê dos elementos».
Outras fontes indicam que o antigo Grémio dos Conserveiros, em Olhão, hoje emparedado, já guardou um espólio interessante cujo paradeiro se desconhece. Também o antigo matadouro (hoje devoluto) já serviu de armazém. Por fim, existia uma amostra no Chalé João Lúcio que terá sido despejada para dar lugar à sede da Sociedade Polis Ria Formosa, cujo destino, também não conseguimos apurar.
Novo centro para artistas
Alexandra Gonin está a renovar a casa com o objetivo de começar um centro de artistas. A ideia não poderia ter vindo em melhor altura, já que Olhão tem vindo a ganhar cada vez mais popularidade no meio cultural, sobretudo, junto da comunidade estrangeira. Apesar de estar numa fase ainda muito prematura, já acolheu uma mostra informal do coletivo «The Olhão Artist Initiative», com obras de Justine Albronda, Piers de Laszlo, Meinke Flesseman, Jeffrey Gaylord Carter, Edwin Hagendoorn, Paulo Gago, Cecilia Persson Carter, Paulo Serra, Jill Stott, Diederik Vermeulen, e Antonia Williams. Gonin é escultora e também é a modelo de várias fotografias artísticas tiradas na casa.