«Às vezes, tenho muitas saudades. Hoje acho estas fotografias comoventes (poignant). São memórias daquele tempo, que é muito diferente do de agora», explica o fotógrafo Tim Motion, 81 anos, que viveu na Praia de Carvoeiro entre 1962 e 1975, um período em que também se dedicou à fotografia de rua, um pouco por toda a região.
O início é um bom lugar para contar esta história. «Em 1959 não tinha um bom emprego. Na altura estava aborrecido e à procura de outra coisa para fazer. Aceitei um trabalho numas adegas, em Londres. Era um emprego sobre vinho. No final, recebi uma carta para ir ao Porto fazer uma degustação. Não sabia nada sobre o país, até pensava que falavam espanhol! Sabia que Portugal tinha uma ligação histórica com Inglaterra por causa da velha aliança. E conhecia o vinho do Porto, porque o tinha estudado. Ao mesmo tempo, a minha namorada estava de férias e acompanhou-me. Alguém nos emprestou um carro, um Jaguar. Viemos rumo ao sul. Fizemos um pic-nic perto de Sagres. Depois começámos a andar para leste em direção a Portimão. Não havia hotéis, nada. Fomos para Lagoa e chegámos a Carvoeiro. E assim começou o resto da minha vida…», recorda em conversa com o «barlavento». Estávamos em 1961 e, no ano seguinte, Tim Motion mudava-se de vez para a então vila piscatória.
«Eu vivia numa sociedade consideravelmente rica e vi-me no Algarve onde não havia água canalizada. Havia apenas uma televisão e os pescadores leiloavam o peixe na praia todos os dias. Era muito bom. Para mim, era um paraíso. Uma paisagem linda, bom vinho, muito forte. O da Adega Cooperativa era quase 14º, era forte demais (risos). O pargo custava 18 escudos o quilo no Mercado de Lagoa».
«Ia à praia de manhã, comprar o meu almoço. As pessoas vinham, viam o peixe na areia e o Manuel Cebola, que era o homem de todo o conhecimento em Carvoeiro. Tinha um café. Podia-se-lhe perguntar qualquer coisa», recorda.
«Trouxe 100 libras em dezembro e não precisei de dinheiro até junho. Nos primeiros meses, eu era apenas um pintor a observar todos os pormenores e toda a luminosidade das paisagens. Depois veio um período de transição, em que procurava capturar em película fotográfica, momentos do dia a dia. Naquele tempo, havia na Europa muita gente a praticar fotografia de rua, ao estilo de Henri Cartier-Bresson. Era uma tendência, uma nova maneira de ver que me interessava muito», explica.
Mais tarde, Tim Motion conheceu Patrick Swift, coautor do livro «Algarve, a portrait and a guide», para quem fotografou. «A nossa (minha e do Patrick) descoberta do Algarve, em 1963 aconteceu porque eu tinha um dos dois únicos automóveis que existiam nesses tempos na Praia do Carvoeiro e também porque tinha uma máquina fotográfica muito simples, uma Ricoh Auto 35, para apontamentos rápidos de paisagens. Só depois comprei uma Leica IIIc, um modelo fabricado em 1953 e que ainda hoje utilizo».
«Ficava quieto contra um muro, à espera que alguém passasse ou alguma coisa acontecesse. Era importante não fazer nada. Escondia-me e as coisas apareciam», lembra.
Um aspeto interessante é que durante as deambulações fotográficas pela região, Tim Motion nunca sentiu qualquer opressão. «Não. No tempo de Salazar, a nós não nos tocavam. Conhecíamos o pintor Lima de Freitas. Trabalhava no teatro em Lisboa, era bastante famoso. Politicamente era muito ativo e penso que foi preso. Eram todos inimigos do Estado, mas nós não ligávamos nada a isso. Em todas as aldeias havia observadores e, claro, que se você entrasse num café grande e gritasse coisas contra Salazar, talvez desaparecesse no dia seguinte. Não sei. Não tive experiência disso», conta em português fluente.
A segunda parte do livro «Algarve 63» já acontece em tempos de liberdade. «No 23 de abril de 1974 estava no bar Sobe e Desce, que geria na altura. Era o nosso aniversário. Dei uma festa e convidei toda a gente da Câmara de Lagoa e da PIDE, que eu conhecia. No 25 de Abril, um agente suicidou-se, outros dois fugiram para Espanha. Na altura, o Partido Comunista era o mais organizado, tudo o resto era caos. Lembro-me que no dia 25, todas as casas oficiais tinham a bandeira russa. Todas. Por todo o lado. E depois começaram os graffiti. Mas a gente normal, não ligava. Não estavam interessados em comunismo. Queriam ir para o trabalho, fazer os seus negócios e não queriam o Estalin nem o Mao Tse-Tung para nada».
A diversidade de imagens mostra a realidade de um país ainda rural. As raparigas na colheita do arroz, entre Silves e Lagoa, os pescadores a arrastar o barco à força de braços. E uma menina descalça, a partir amêndoas, no meio da rua.
Incomodava-o? «Sim e não. Porque via e simpatizava. Às vezes dava moedas ou qualquer coisa. Em Inglaterra raramente veria isso, mas diria que estas condições existiam em certas vilas do norte, onde a indústria tinha desaparecido, mas, ao mesmo tempo, havia um sistema de apoio do governo» que fazia um grande contraste com a realidade portuguesa de então.
Em certas ocasiões «entrava um pouco em choque, mas sabia que havia gente bastante rica em Lagoa, comerciantes que tinham propriedades. No entanto, em Carvoeiro, a população era bastante pobre. Naquele tempo, não era muito mau, mas o Manuel Correia Cebola disse-me que nos anos 1950, havia mesmo fome. Quando eu estava lá no princípio, na taberna com os pescadores, o pequeno-almoço era um alho, uma colher de azeite e um pouco de salsa com água quente. No domingo, acrescentavam um ovo», recorda.
«Havia um homem muito triste que cantava o fado, chamado Camilo Amaral. Um dia fui à taberna almoçar e pediram-me para descascar as batatas. Sabia fazer. O Camilo, com uma expressão muito triste na cara, disse-me; ó Timóteo, vejo que você nunca teve fome. Porque eu desperdiçava demais no corte».
O Algarve «é uma parte grande da minha vida. Não se esqueça que me casei em Carvoeiro. Na altura podia-se fazer ali um filme daqueles italianos com a Sofia Loren. Não havia bares para encontrar mulheres além das vizinhas e das mulheres de trabalho. Neste sentido, a vida era um pouco estranha. Lembro-me de uma rapariga canadiana que me visitou uma vez. Foi a primeira vez que vi uma mulher loura em seis meses. As algarvias eram bonitas. Diziam os outros que são muito quentes (risos), sim é verdade», brinca.
«Ao mesmo tempo, nesta pequena aldeia, havia muita coisa escondida que as pessoas faziam. Numa pequena sociedade assim há uma tendência para saber o que você vai fazer, mesmo antes de você pensar».
Uma personagem marcante que recorda era o padre António Martins de Oliveira. «Era muito simpático. Passava muito tempo nas tabernas em Lagoa a conversar. Nós chamávamos-lhe Frank Sinatra. Era neat, sempre muito bem vestido e arranjado, com um cigarro e um brandy».
Depois de ter deixado Portugal, em 1975, Tim Motion ainda voltou a fotografar para a revista «Algarve Life». «Em 1978 já o turismo estava muito desenvolvido. Quando eu tinha o bar Sobe e Desce, muita gente rica de Lisboa vinha para cá de férias, os Espírito Santo, os Melo e essas famílias. Os filhos vinham de avioneta. Caras bonitas, algumas ricas. As coisas mudam, não é?».
«Algarve 63» é o culminar de dois anos de trabalho
«Cruzei-me com o Tim Motion há mais de dois anos, nas redes sociais, quando estava à procura de fotografias antigas de rua, para o projeto Mercados no Algarve ao longo dos tempos. Ele tem uns registos incríveis da feira anual de Tavira, captados em 1963 e em 1964. Foi a partir dessas imagens que este projeto nasceu», explica Nuno de Santos Loureiro, coordenador e curador dos Encontros de Fotografia de Lagoa (ENFOLA) e professor na Universidade do Algarve. «De forma gradual, e aos poucos, fui estreitando um bom relacionamento com o Tim, que me enviava imagens da região, da década de 1960. A coleção foi ganhando corpo e, para mim, tornou-se cada vez mais evidente que se justificava divulgá-la, até porque estava praticamente inédita ou esquecida», sublinha. «Sem falsas modéstias, posso dizer que conheço algumas coleções de fotografia sobre o Algarve, desde o Artur Pastor até ao Michael Howard, e por isso afirmo que não há nada paralelo ao trabalho do Tim Motion. Não tive, por isso, muitas dúvidas de que a edição de um livro era a melhor forma de perpetuar este conjunto de registos muito relevantes para a memória visual da região», acrescenta. Segundo Nuno de Santos Loureiro, quer a equipa do ENFOLA, quer o executivo da Câmara Municipal de Lagoa «foram acompanhado e acarinhando o projeto. Sempre partilharam a opinião de que se justificava uma muito cuidada edição em forma de livro do «Algarve 63», nome que resulta do facto de eu ter escolhido 63 imagens, porque foi no ano de 1963 que este fotógrafo britânico começou a compilar um trabalho que tem um enorme valor histórico e documental», adianta.
Edição de livro é «salto qualitativo» para os ENFOLA diz Francisco Martins
A quarta edição dos Encontros de Fotografia de Lagoa (ENFOLA) conta com a novidade da publicação do livro «Algarve 63», com fotografias da autoria de Tim Motion, que será lançado na sexta-feira, dia 14 de julho, às 18 horas, no Sítio das Fontes de Estômbar. «Já era necessário dar esse passo para a afirmação dos Encontros. Assim, a exposição será apoiada pela obra, que vai estar à venda em qualquer livraria ou papelaria de referência», avança o Francisco Martins, presidente da Câmara Municipal de Lagoa ao «barlavento». «Será juntar o útil ao agradável, porque esta exposição mostra fotografias de qualidade do Algarve, que podem depois ser adquiridas naquele formato», acrescenta.
O evento foi criado pela Câmara Municipal de Lagoa, em parceria com a Universidade do Algarve, pouco depois do início do mandato de Francisco Martins, sendo já «um dos encontros de fotografia mais importantes que se realiza em Portugal», acredita o autarca. Apesar deste livro se basear em retratos captados pela objetiva de alguém que era amador na altura, esta prioridade na preservação do património cultural em livro não é inédita. «Publicámos há dois anos, no aniversário de Lagoa, os 240 anos do concelho em fotografia, com uma compilação dos retratos que os lagoenses tinham e que foram cedendo», recorda.
«Este ano houve esta possibilidade de trazer cá o Tim Motion. Tenho a felicidade de ter no ENFOLA dois enormes apaixonados por esta arte – Nuno dos Santos Loureiro, da Universidade do Algarve, e o arquiteto José Vieira, da Câmara Municipal de Lagoa – que, após eu lhes dizer o que tenciono quando planeamos a edição dos Encontros, eles têm sempre o cuidado de me apresentar o que estão a pensar fazer. Nessa altura, faço sempre uma pesquisa mais aprofundada (por uma questão de gosto pessoal, pois tenho confiança nas escolhas que eles fazem). Percebi que o Tim Motion é hoje um excelente profissional, especializado em fotografia aérea. Honra-nos imenso que cá esteja», afirma o autarca.
A exposição «Algarve 63» ficará patente no Parque Municipal das Fontes de Estômbar, em Lagoa, até 16 de setembro. Poderá ser visitada de terça-feira a sábado, as 11 às 13 horas, e das 14 às 18 horas. Depois de 16 de setembro, a exposição pode ser visitada sob marcação para o mail [email protected]
Património e memórias de Lagoa e do Algarve
«Tive a felicidade de ver a prova da publicação com fotografias do meu concelho, onde reconheci, por exemplo, o Padre Oliveira, em Carvoeiro, a vinda do Américo Tomás ou até o mercado das cordas em Estômbar, que nem sabia que tinha existido», admitiu Francisco Martins. Aliás, o autarca de Lagoa, em confidência ao «barlavento», adianta que, na sua opinião, estas imagens elevam quem as vê para níveis, conhecimentos e vivências que se foram perdendo com o tempo. «Gosto muito de uma fotografia, quando consigo meter-me lá. Do que vejo da obra do Tim Motion, e gosto imenso disso, é que ela não é estática. Estamos ali e quase que se ouve o som e vê aquela envolvência. Por exemplo, a fotografia do Padre Oliveira é quase em 3D, porque tem profundidade. Dá para sentir e até parece que vai passar por nós. E isso, de facto, é fantástico».
Por outro lado, esta edição do ENFOLA cruza-se com a comemoração do ano dedicado ao Património no concelho de Lagoa. As fotografias, histórias e memórias também são património cultural de uma terra e das pessoas que lá vivem. E podem ser levadas para casa para consulta futura para quem adquirir esta edição do «Algarve 63». As fotografias que serão apresentadas retratam o dia a dia, eventos, histórias que «estão na nossa memória, mas que, um dia, quando cá não estivermos se perdem. O meu filho nunca viu a lota no meio da areia, mas eu vi. E se tiver aquela fotografia, ele vai olhar para aquele espaço, mais tarde, e vai achar engraçado saber o que lá se passou», quando o pai era pequeno.