A História diz-nos que a Humanidade foi desde sempre fustigada por doenças mais ou menos mortíferas e mais ou menos abrangentes.
Desde as pestes da antiga Grécia (Peloponeso e Atenas), ainda antes da era cristã, passando pelas que acometeram o período do Império Romano (e cujos nomes derivavam do imperador reinante à data – Antonina, de Cipriano, Justiniano, entre os séc. II até VI já da nossa Era), passando pela lepra (séc. XI) e a «bubónica», que teve três vagas diferentes, sendo a do séc. XIV, tristemente apelidada de «peste negra», a mais mortal e que pode ter dizimado 1/3 da população mundial, passando pela varíola que assolou as populações indígenas americanas do período colombiano (sécs. XV-XVII), a cólera e a gripe russa (séc. XIX), ou já no séc. XX, as gripes, espanhola (cujo pico coincidiu com o final da I Grande Guerra, que vitimou cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo), a asiática e a de Hong-Kong (nas décadas de 50 e 60 do século passado), ou a pandemia do VIH/SIDA, logo no início da década de 1980.
Já no séc. XXI, no qual vivemos, tivemos os surtos de SARS (2002/3), gripe A (2009), MERS (2015) e de Ébola (2016), até aqui chegados, à pandemia da COVID-19.
Na breve resenha histórica acima apresentada, há tendências que saltam à vista em termos de comportamento:
1) estes surtos/epidemias/pandemias têm vindo a tornar-se cada vez mais frequentes à medida que as pessoas se foram concentrando em densidades cada vez «apertadas» e que a facilidade de deslocação aumentou, diversificando contactos entre populações e ecossistemas por vezes tão diferentes e remotos;
2) se a taxa de mortalidade diminuiu, muito por via da melhoria das condições higiosanitárias, avanços da medicina e aumento da cobertura per capita de serviços de saúde, não é menos verdade que com a mediatização, quase em tempo real, da progressão global do avanço das taxas de morbilidade/mortalidade associadas, aumenta também exponencialmente a pressão da opinião pública sobre o poder público (governos e autoridades de saúde pública) para uma atuação mais célere e efetiva (isolamentos sociais e profiláticos, restrições ao movimento e circulação, fecho de fronteiras aéreas, marítimas e até terrestres, cercas sanitárias, encerramento de atividades tidas como não essenciais, etc.).
Se nos concentramos na evolução do novo Coronavírus (SARS-Cov-2), temos que:
― Na fase de contenção/mitigação, e excluindo desde já os comportamentos erráticos e motivados pela simples ignorância ou populismo na subestimação quase dolosa dos riscos inerentes, para nos concentrarmos somente nas estratégias com base científica minimamente credível, houve uma tendência quase generalizada dos vários países e geografias para o condicionamento da socialização e para o encerramento de tudo o que são atividades tidas como não essenciais, apesar de alguns gradientes tidos como mais liberatórios e/ou menos intrusivos, pelo menos durante a fase inicial de progressão da COVID-19, de países que procuraram restringir os danos para a economia e/ou propositadamente não travar o contágio, pelo menos dentro dos grupos tidos como menos vulneráveis, visando alcançar mais rapidamente uma imunidade populacional em grande escala (enquanto a ansiada vacina não começar a ser aplicada de forma massiva, o que provavelmente só acontecerá, na melhor das hipóteses, daqui a um ano), se bem que na maioria das situações com efeitos que mais tarde se viriam a revelar contraproducentes (e.g. Reino Unido e até mesmo a Suécia).
― Já na fase «de regresso à suposta normalidade», para aqueles países que já se encontram na fase de «planalto» ou mesmo no início da curva descente da transmissão, as estratégias não diferem muito, apenas talvez nos timings e velocidades propostas para sua implementação: reabertura progressiva e começando por áreas e atividades com menor risco, leia-se suscetíveis de maior controlo de eventuais aglomerações e por essa via tentando preservar o distanciamento social sanitário.
Aqui chegados, dedico as próximas linhas à situação muito particular do Algarve e da sua economia.
Para ajudar a esta reflexão alguns factos apresentados em jeito de diagnóstico (matriz SWOT) para mais fácil sistematização.
Pontos fracos
― A economia do Algarve é fortemente especializada no turismo e atividades com este relacionadas; quase que apetecendo dizer estarmos perante uma «monocultura» ou «mono-indústria» tal o seu peso quer na componente económica (PIB, VAB) quer social (emprego);
― Apresenta poucas complementaridades e sinergias intra e intersectoriais, nunca tendo o turismo, apesar da sua posição quase hegemónica, sido capaz de constituir-se na força motriz para uma matriz económica mais diversificada e sustentável, seja por culpa própria seja também por demérito dos demais sectores (agroalimentar e pescas, indústria transformadora, etc.) por crónica falta de organização e incapacidade de competir por capital e mão de obra.
― A atividade turística algarvia, salvo honrosas exceções que apenas confirmam a regra, é altamente intensiva no consumo de recursos (capital e mão de obra, maioritariamente pouco qualificada, entre outros) e assenta preferencialmente a sua estratégia de diferenciação, uma vez mais salvo honrosas exceções, na exploração dos recursos naturais. Por essas razões, é muito dependente da sazonalidade, pouco atreita à inovação, logo fortemente vulnerável a choques externos (do lado da procura) similares ao que hoje vivenciamos;
― O território do Algarve é muito desequilibrado quer do ponto da ocupação populacional, quer da atividade económica e subsequente produção de riqueza, gerando elevadas disparidades e custos de contexto.
Pontos fortes
― A excelência dos recursos endógenos do Algarve, quer naturais (nos quais incluo também a paisagem e a biodiversidade) quer antropogénicos (história, cultura, gastronomia e o conceito-chapéu da Dieta Mediterrânica).
Ameaças
― Emergência de crises sanitárias e outras potenciais calamidades, sejam de natureza biótica ou abiótica, de origem natural ou derivadas da atividade humana, cujo risco, intensidade e frequência tende a aumentar por efeitos do incremento da facilidade na movimentação de pessoas e mercadorias propiciada
pela globalização (sentida com particular acuidade a partir do momento em que os preços das passagens aéreas se «democratizaram»), sendo algumas, como as pandemias, altamente paralisantes.
Oportunidades
― «A necessidade faz o engenho»; «Maior predisposição à disrupção exigível para o cenário pós-crise e para estarmos melhor preparados para riscos futuros»???
Aqui chegados, importa clarificar o estado em que se encontra a economia do Algarve e o seu tecido empresarial, no momento em que em Portugal se começa também a falar no regresso a uma suposta normalidade, necessariamente diferente da anterior, pois logicamente muito refém ainda (durante quanto tempo?) do fator psicológico, i.e. do medo de uma possível recidiva.
E o cenário é muito preocupante: por tudo o atrás mencionado, a economia da região do Algarve, que já é das mais fortemente atingidas pelas consequências desta pandemia, arrisca um hiato bastante prolongado para regresso (inevitavelmente diferente) ao status quo anterior: paralisou quase por completo (e se algumas das empresas que hibernaram hão-de conseguir reanimar, sempre com pesado «lastro» associado, outras, pior ainda, não mais voltarão a reabrir); ao nível macro, os impactos são/serão muito severos pela recessão e destruição de emprego, sendo que a amplitude total desses estragos dependerá muito do maior ou menor prolongamento das ondas de choque da pandemia «covidica» no tempo ou, trocando por miúdos, da afetação que ainda venha a fazer-se sentir na época alta do turismo algarvio, que está à porta; o fator psicológico é indutor de insegurança e incerteza, vai influir na possível alteração de comportamentos, tudo aspetos muito sensíveis para atividades com as caraterísticas do turismo.
Para o futuro, sobre possíveis estratégias a prosseguir, e decorrente das lições (aprendizagem) a reter desta crise, que terão necessariamente de ser diferentes das que nos trouxeram até aqui, para nos habilitarem a estar um pouco melhor preparados face a riscos futuros – apesar de nunca totalmente, pois isso é manifestamente impossível em crises com este grau de incerteza, virulência e magnitude -, sugerem-se como possíveis dimensões de atuação:
1) Ambiente: maior resiliência estrutural face à seca meteorológica; antecipação das datas para concretização das metas de descarbonização da economia (substituição das formas de energia convencionais, altamente poluentes, por renováveis, como o solar/fotovoltaico e as associadas ao oceano; privilegiar formas de mobilidade menos impactantes, incluindo a conclusão da eletrificação e a interligação da rede ferroviária regional com o sul de Espanha, e suaves; maior enfoque na economia circular, de que a reutilização das águas residuais tratadas constitui um de muitos possíveis exemplos, e nos circuitos de comercialização mais curtos, logo com menor pegada de carbono); regeneração /recuperação da paisagem e dos territórios do interior (com aumento da resiliência aos incêndios rurais), nomeadamente através da recuperação e remuneração dos sistemas agro-silvo-pastoris tradicionais enquanto serviços ecossistémicos de interesse público; proteção dos valores naturais e da biodiversidade; gradual adaptação da produção primária, do agroalimentar e das pescas/aquicultura, para sistemas menos intensivos e/ou impactantes (v.g. redução dos consumos de água, agroquímicos, antibióticos; adoção de fontes de energia renováveis);
2) Economia: promoção de uma verdadeira economia em rede, mais solidária e mais próxima/local, que explore complementaridades e sinergias virtuosas, em que ao invés de competidores tenhamos coopetidores (cooperação+competição). Ganham os sectores produtivos locais por beneficiarem da alavancagem; ganha o turismo, pois ao diferenciar-se através do que é endógeno, acrescenta valor à sua oferta, combate a tendência fácil para a massificação/descaraterização, privilegiando a qualidade em detrimento da escala e desta forma ganhando maior resiliência e capacidade para inovar;
3) Governança: aproveitar o período de negociação em curso do próximo pacote de fundos comunitários para o pós-2020 e o enfoque estratégico da CE no Pacto Ecológico Europeu para desenhar um programa específico de cofinanciamento para apoiar o mencionado em 1) e 2) e promover de forma eficaz a sua posterior execução; promover uma distribuição mais justa e equilibrada, entre territórios, da relação custos (leia-se na produção de bens e serviços públicos – armazenamento de água e ciclo hidrológico, sequestro do carbono, preservação dos valores naturais e biodiversidade)/ benefícios, mormente receitas geradas pelo turismo;
4) Sistema de Inovação: papel da Universidade (e laboratórios de I&D) na produção de conhecimento e soluções tecnológicas e na formação de Recursos Humanos (RH) qualificados, ajudando a dotar a região da massa crítica exigível para suportar as mudanças necessárias em prol de uma maior resiliência.
Pedro Valadas Monteiro | Professor convidado da Faculdade de Economia da Universidade do Algarve (FEUALG)